sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

PATATIVA – Um Poeta do Brasil

PATATIVA – Poeta do Brasil

Rosemberg Cariry - Escritor e cineasta

As culturas populares nordestinas são diversificadas, ricas e complexas, plasmaram-se, ao longo dos séculos, com a contribuição de muitos povos e de muitas etnias. Nesta região, nascedouro da nação brasileira, historicamente, tiveram encontro marcado as principais vertentes das culturas ocidentais que se mesclaram com as culturas ameríndias e as culturas afro-brasileiras. Estas culturas populares, regionais e universais ao mesmo tempo, são inesgotável fonte de renovação para os mais importantes movimentos culturais e artísticos brasileiros contemporâneos. Impossível citar todos os nomes nos diversos campos das artes que beberam nas fontes generosas das culturas populares. Escritores, poetas, músicos, artistas plásticos, dançarinos, cineastas e pensadores de todo o País têm obras fertilizadas com os signos das culturas populares nordestinas. Se estas culturas puderam oferecer elementos para a construção das artes contemporâneas e eruditas, com destaques no País e no exterior, é porque têm a capacidade de também gerar seus próprios artistas, escritores e poetas, inseridos na vida cotidiana e reconhecidos em suas próprias comunidades. Aqui falamos de artistas genuinamente populares, nascidos no seio do povo, vivendo em comunidade com este povo, aplaudidos e amados por esse mesmo povo. Como exemplo maior da excelência estética, da força comunicativa e social da poesia nascida no seio do povo - dentro de uma comunidade tradicional - com repercussão nos grandes centros urbanos, temos Patativa do Assaré, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos - síntese de todas essas vertentes, profundo elo que une o passado ao presente, projetando-se para o futuro. Patativa do Assaré é guardião de saberes e sensibilidades de todo um povo.

A história de Antônio Gonçalves da Silva, o menino pobre do sertão que viria a se transformar no famoso Patativa do Assaré, embora pareça com as histórias de tantos outros Antônios ou Severinos, é singular: filho do agricultor Pedro Gonçalves da Silva e de Maria Pereira da Silva, Antônio Gonçalves da Silva nasceu no dia 5 de março de 1909, na cidade Assaré, no Cariri cearense. Foi criado em meio a muitas privações e, ainda criança, começou a trabalhar na roça, com o pai e os irmãos. Em 1913, perdeu um olho por causa de uma inflamação, acontecimento que o destinaria para o resto da vida a levar no rosto a marca de “Camões” – tragédia e destinação. Seu pai, que também era poeta, morreu no dia 28 de março de 1917, piorando ainda mais a situação de pobreza da família, que vivia da agricultura de subsistência. A pequena propriedade rural foi dividida entre os filhos José, Antônio, Joaquim, Pedro, Maria e Mercês. Nas profundas noites do sertão, à luz das lamparinas, quando voltava da roça, o pequeno Antônio escutava os versos de cordel soletrados pelo seu irmão mais velho. História de fadas e encantamentos, de bois misteriosos e cavaleiros valentes, nas figuras de Roldão e Ferrabrás, causos de amor sem cura e noticias de um país que acordava para a modernidade. Impulsionado pela vontade de aprender, orientado pela mãe, começou a freqüentar as aulas de um mestre-escola que sabia rudimentos de português e, na ponta do lápis, as quatro operações matemáticas. Foi alfabetizado por meio do livro de Felisberto de Carvalho, que da infância ficou-lhe como fonte inicial de todos os saberes, como um “tesouro da juventude”. O pequeno Antônio ficou menos de seis meses na escola, mas a sua inteligência privilegiada o levou a novas leituras, tornando-se um autodidata e lendo os raros livros que lhe caíam nas mãos.

Uma mudança importante aconteceu na vida do jovem Antônio, quando, por volta de 1925, depois de ouvir uma cantoria, pediu a sua mãe que vendesse uma cabra que possuía e, com o dinheiro, comprasse uma viola, com a qual começa a fazer cantorias na região da Serra de Santana e da Serra do Quincuncá. Nesta época, a Coluna Prestes varava o Brasil e anunciava tempos de justiça e de liberdade, e cego Aderaldo já despontava como um dos mais importantes cantadores do Brasil. Em 1928, seguindo o caminho de muitos nordestinos, o jovem Antônio aventurou-se pela Amazônia, o sonhado “Eldorado” dos retirantes, que abrigou tantas tragédias, em sua dura realidade. O jovem cantador Antônio reside algum tempo no Pará, onde faz cantorias com outros cantadores em colônias e assentamentos de migrantes nordestinos. Em Belém, é batizado pelo escritor José Carvalho de Brito com o sonoro nome de Patativa do Assaré. É comum os cantores nordestinos adotarem nomes de pássaros. A nomeação do local onde nasceu, “do Assaré”, foi-lhe dada para diferenciá-lo de outros cantadores com nome de Patativa. De volta, em Fortaleza, foi recebido na Casa de Juvenal Galeno. Teve o privilégio de conhecer o poeta das “Lendas e Canções Populares”, já bem idoso e próximo da morte. Deste encontro, Patativa guardou uma forte emoção. De regresso ao sertão de Assaré, retoma o seu trabalho na roça e faz cantorias pela região. Lê o Tratado de Versificação, de Guimarães Passos e começa a ler os grandes clássicos da língua portuguesa: Camões, Bocage, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Olavo Bilac, Castro Alves, Casimiro de Abreu, padre Antônio Tomás, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, entre outros. Mesmo não fazendo profissão da arte da cantoria, as apresentações ao som da viola rendem-lhe algum dinheiro que ajuda na sua manutenção, notadamente nos anos de seca, como foi o da grande seca de 1932. Neste ano, vendo imensos sofrimentos e tragédias das famílias retirantes, compôs um dos mais belos e pungentes poemas já escritos na língua portuguesa: “A Morte de Nanã”. Na Serra de Santana, casa-se, no dia 6 de janeiro de 1936, com Belarmina Paes Cidrão, a dona Belinha, que morava em um sítio próximo ao de Patativa. Desta união, nasceriam quatorze filhos, dos quais sobreviveram sete, quatro homens e três mulheres: Afonso, Pedro, Geraldo, João Batista, Lúcia, Inês e Miriam. A fome, as doenças e o desamparo em que viviam as famílias camponesas nordestinas se traduziam nos altos índices de mortalidade infantil, da qual a família de Patativa é um exemplo doloroso.

A década de 1930 marcou a história do Brasil com convulsões sociais e grandes mudanças políticas. Foi o período em que a consciência social e política de Patativa ampliou-se no calor dos embates. Já com alguma influência dos movimentos políticos e das idéias sociais mais avançadas que sacudiam o País, começa a compor poemas que denunciam o latifúndio e o sistema de servidão imposto ao camponês, sem deixar de fazer também os seus poemas líricos e brejeiros. Na literatura, o romance regional mostrava as feridas sociais da nação brasileira, com autores como Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, José Américo de Almeida e José Lins do Rego, entre outros. A veia satírica de Patativa do Assaré causou-lhe alguns problemas. Em 1943, acusado de desacato à autoridade, por conta de um poema satírico intitulado “Prefeitura sem Prefeito”, é preso, mas solto logo em seguida por intervenção de seus admiradores. Volta a sua lida na roça e a suas composições poéticas cheias de lirismo e de denúncias sociais. Fazendo uso da sua viola, faz cantorias e desafios com os grandes cantadores nordestinos, notadamente com João Alexandre. Por volta de 1953, durante a grande seca, Patativa cria o poema “Triste Partida”, que se tornaria popular, cantado ao som da viola, falando da epopéia dos nordestinos expulsos da terra sertaneja para as plagas do sul (Sudeste). A música “Triste Partida” seria gravada por Luiz Gonzaga, no ano de 1964, e se tornaria um dos grandes sucessos do Rei do Baião e um hino dos nordestinos do êxodo.

Ainda na primeira metade da década de 50, Patativa começou a recitar seus poemas na Rádio Araripe do Crato, no programa de Tereza Siebra Lima, oportunidade em que foi ouvido pelo filólogo José Arraes de Alencar, que se encontrava visitando a família, na cidade do Crato. José Arraes de Alencar, maravilhado com a beleza dos versos do poeta de Assaré, incentivou-o a publicar seu primeiro livro, “Inspiração Nordestina”, pela editora Borsói, do Rio de janeiro, em 1956. Com essa obra pronta no matulão, viola nas costas, Patativa andou por todo o Ceará fazendo suas cantorias e vendendo o seu livro, para pagar a dívida que contraíra com o editor. Foi quando fez contatos com o movimento das “Ligas Camponesas” e compôs poemas sobre a reforma agrária. Usando um pseudônimo, Patativa do Assaré publica poemas em jornais de esquerda que refletem as inquietações políticas do movimento operário-camponês. Suas leituras incluem jornais, revistas e livros de cunho socialista e comunista.

O início da década de 1960 encontrou o Nordeste em plena ebulição política e social, notadamente no Pernambuco e na Paraíba, onde o movimento das “Ligas Camponesas” ganhara grande força entre a população rural. Em 1962, a convite do seu parente, o governador Miguel Arraes, apresenta-se com outros cantadores, em Recife, ocasião em que toma conhecimento dos acontecimentos políticos e faz contatos com lideranças camponesas do Pernambuco e da Paraíba. O golpe militar de 1964 trouxe atribulações para Patativa, que viu várias lideranças do movimento camponês serem presas e foi também ameaçado de prisão. É a época em que Patativa se relaciona com a intelectualidade democrática e esquerdista do Crato, principalmente com Elói Teles de Moraes, que faz um programa de poetas populares, na Rádio Araripe do Crato. Em 1966, Patativa viajou ao Rio de Janeiro, para tratar da reedição do livro “Inspiração Nordestina”, agora acrescido do “Cantos do Patativa”, que sairia no ano seguinte, pela mesma editora Borsói (1967). Ao voltar ao Cariri, percorreu toda a região vendendo seu livro e foi, pouco a pouco, abandonando a cantoria de viola. Abandonando a vida de cantador, dedica-se ao trabalho na roça e firma-se como “poeta popular”. Em 1968, é decretado o Ato Institucional nº. 5, e a repressão aos movimentos culturais, populares e democráticos se fez sentir com mais força, dando início aos chamados “anos de chumbo”. Patativa alargou, durante essa fase, seu círculo de amizade com intelectuais e políticos democráticos que militavam na oposição, no então MDB, na região do Cariri e teve, em 1970, publicado o livro “Patativa do Assaré, novos poemas comentados”, por iniciativa de J. de Figueiredo Filho, então presidente do Instituto Cultural do Cariri. O livro repercute na região e mesmo na capital, onde o folclorista Figueira Sampaio, amigo de Patativa, organizou lançamentos e recitais.

Em 1973, no dia 13 de agosto, Patativa foi atropelado, em Fortaleza, ao atravessar uma avenida. Esse acontecimento lhe causou grandes sofrimentos e o deixou com graves seqüelas, para o resto da vida. Por volta da segunda metade da década de 1970, Patativa do Assaré encontrou-se com jovens do movimento cultural do Crato que faziam o “Grupo de Arte Por Exemplo” e participou de shows, performances e festivais de teatro, música e poesia. Patativa foi o grande mestre desta geração que, no Cariri, fazia arte de vanguarda, amava os Beatles os Rolling Stones, a cultura “underground” e juntava-se à cultura popular em suas contestações. Neste período, a produção poética de Patativa é das mais vivas e reflete crítica mordaz ao autoritarismo da ditadura militar, o que o torna bastante popular nos grupos políticos democráticos, estudantis, operários e camponeses, notadamente no movimento da Igreja Eclesial de Base. Em 1978, por iniciativa do sociólogo Plácido Cidade Nuvens, foi lançado pela Editora Vozes, com grande repercussão nos meios intelectuais brasileiros, o livro “Cante lá que eu canto cá”. Patativa do Assaré deve à publicação deste livro o seu reconhecimento pela intelectualidade dos grandes centros urbanos, notadamente no Rio de Janeiro e São Paulo, e a sua descoberta pela grande imprensa. Reconhecimento maior ainda viria por parte do SBPC – Congresso Brasileiro para Progresso da Ciência - SBPC, que, em 1979, nomeou o seu congresso anual de “Cante lá que eu canto cá”, em homenagem ao poeta. Patativa participou de shows memoráveis e foi aclamado por lideranças intelectuais e populares de todo o País. Atuou no movimento pela anistia e pelo regresso dos presos políticos no exílio. A sua música “Canção do Pinto” tornou-se uma espécie de hino libertário da anistia e da redemocratização do País. Neste mesmo ano, iniciei as filmagens de documentário sobre o poeta. Um outro documentário, já em bitola profissional de 35mm, seria dirigido por Jefferson de Albuquerque Jr e por mim, em 1983, sendo legendado em vários idiomas para exibições em festivais nacionais e internacionais. O filme ganha prêmios na Jornada Internacional de Cinema da Bahia.

No movimento “Massafeira”, em 1979, organizado pelo cantor Ednardo, fiz a curadoria de um show com a participação de dezenas de artistas populares do Cariri. Patativa do Assaré foi a estrela maior deste espetáculo e apresentou-se cantando com Raimundo Fagner e Ednardo. Ainda na “Massafeira”, a CBS gravou ao vivo o disco “Poemas e Canções”, produzido por Fagner, com quem, em 1980, Patativa se apresenta em vários shows por todo o País, tornando-se a música “Vaca Estrela e Boi Fubá” um grande sucesso popular. Em 1981, Fagner produziria um novo disco de Patativa “A Terra é Naturá”. No mesmo ano, Patativa deixou a Serra de Santana e passou a morar em Assaré. Atendendo a inúmeros convites, Patativa apresenta-se em programas da Rede Globo, recebe homenagens oficiais e títulos de cidadão de várias cidades. O sucesso e o reconhecimento popular nacional de Patativa do Assaré, iniciados a partir da segunda metade da década de 1970, consolidam-se no início da década de 1980 e chegam ao seu apogeu em 1984, quando o poeta se faz presente em vários acontecimentos políticos e culturais, participando da campanha pelas “Diretas Já”. Patativa consolidou também nos anos de 1980, a sua amizade com jovens compositores cearenses e com jovens políticos que militavam em partidos de esquerda. Por todo o Nordeste, nos palanques e nos palcos, nas universidades e nas praças públicas, nas latadas dos sertões e nas feiras, recita os seus poemas, ao lado de grandes artistas e políticos que lutam pela redemocratização do País. Uma longa entrevista com Patativa do Assaré, realizada por mim, foi publicada no livro “Cultura Insubmissa” (1982). Neste mesmo livro, foi publicado o artigo "Nosso Poeta do Futuro", em que Oswald Barroso escreveu: "Discutem-se os impasses da arte e literatura: qualidade versus popularidade, autor versus obra, papel social da arte etc. Patativa é a imagem do necessário caminho. Obra e autor uma mesma unidade (não só porque a mente do poeta é repositório de todo o seu extenso trabalho). O poeta na praça, nas praias, nas mesas de bar, no teatro, na calçada. Em qualquer local e hora, a qualidade de sua poesia. As multidões lhe ouvem horas a fio, nas faculdades nas roças, nos alto-falantes do interior e na televisão, no folheto popular e nos discos da CBS. A conversa em poesia. Santos, Copacabana ou Quitaiús."

A conjuntura política nacional apontava para a democracia e para transformações nas relações tradicionais do poder. No Ceará, esta mudança deu-se com a queda dos chamados “coronéis”, em 1986. O reconhecimento oficial do Estado do Ceará chegou na forma de “Medalha da Abolição”, honraria que lhe foi conferida pelos “relevantes serviços prestados ao Estado” (1987). A Dra. Violeta Arraes assumiu a secretaria de Cultura do Estado (julho de 1988) e deu um novo impulso às artes no Ceará. Patativa passou a ser um dos grandes ícones da cultura popular, sendo colocado em alto pedestal. A entrega do diploma “Doutor Honoris Causa”, pela Universidade Regional do Cariri - URCA, em 1989, transformou-se em grande acontecimento cultural e político. Neste período, produzi a edição e prefaciei o livro “Ispinho e Fulô” (1988) e lancei ainda o disco “Patativa – Canto Nordestino” (1989). Os recitais de Patativa se transformam em grandes sucessos de público. A imprensa nacional dedica grandes espaços na divulgação do poeta e da sua obra. Os festejos do seu aniversário, naquele ano de 1989, foram encerrados com apresentação de Patativa do Assaré e Fagner, no memorial da América Latina, em São Paulo. No aniversário de 70 anos, festa organizada pelo “Diretório Estudantil Patativa do Assaré” - curso de letras da UFC e pelo Jornal Nação Cariri, Patativa foi surpreendido pela visita de Luiz Gonzaga, que com ele cantou a “Triste Partida”, em momento de grande beleza e emoção.

A década de 1980 marca o reconhecimento de Patativa do Assaré como grande poeta, como uma expressão literária mais complexa e mesmo erudita. Antes se falava apenas da pureza, da simplicidade, da nordestinidade e da espontaneidade da poesia de Patativa do Assaré. Havia até os que louvavam Patativa por ser poeta pobre e analfabeto, como se isso fosse mérito e aparentemente o aproximasse do povo. Finalmente, reconhecia-se que Patativa do Assaré usava o "dialeto caboclo" para compor suas poesias quando desejava, que este recurso era uma opção estética e uma postura de vida, identificação real com as classes oprimidas, mas que era capaz de também compor em oitavas camonianas e escrever sonetos alexandrinos de métricas perfeitas, em português erudito. Dono de ritmos e de musicalidade únicos, mestre maior da arte da versificação e com vocabulário que ia do dialeto da língua nordestina aos clássicos da língua portuguesa, Patativa transformou-se na síntese do saber popular versus saber erudito. Da luta pela vida, da observação profunda da realidade, da herança popular e dos estudos, surgia o Patativa - poeta dos oprimidos, dos operários, dos sem-terra e uma das maiores expressões das letras brasileiras. Sobre a poesia de Patativa do Assaré, expressou-se muito bem o crítico J. Ramos Tinhorão, em artigo publicado no "Jornal do Brasil”, "Ao contrário dos cantadores de improviso ou poetas de cordel, que se dedicam ao romance (histórias contadas em versos), à rememo- ração ou invenção de desafios, ao comentário de acontecimentos históricos ou da atualidade ou a demonstrações de conhecimentos, nos folhetos de ciências, Patativa do Assaré identifica-se mais com os poetas literários, dando preferência à criação livre em redondilhas (onde pelo ritmo lembra às vezes Gonçalves Dias) e em decassílabos, sem menosprezar combinações métricas, com o encadeamento de duas redondilhas maiores numa mesma linha, originando um verso de 14 sílabas. Ou ainda com o uso de um verso em redondilha maior solto, completando o pensamento expresso na linha combinada. (...) A temática preferida do bardo popular (...) são as contradições da vida, a riqueza e a pobreza, a felicidade e o infortúnio, tudo repassado ideologicamente de um sentido de protesto contra a injustiça social (...). Aliás, é ouvindo por sua própria voz a poesia de Patativa do Assaré que se pode sentir a falsidade dos que, como Catulo da Paixão Cearense, no início do século, tentaram o caminho da poesia popular pela imitação fonética da fala regional e pela busca de temas supostamente ingênuos, para ficarem de acordo com a psicologia e a cultura dos caboclos. Patativa fala precebe por percebe não por modismo, mas porque os seus “rr” de sertanejo cearense são excessivamente rotativos, (...). Ao contrário do que Catulo poderia imaginar, porém, Patativa do Assaré não é nada bobo, e intuitivamente (sic), por necessidade de rima, sabe quando usar, inclusive recursos da poesia clássica como as inversões, a exemplo do verso: "Se eu às vezes brincando tava de borboleta pegar."

A década de 1990 consolidou a fama nacional de Patativa, agora com reconhecimento oficial, e deu início ao seu processo de mitificação. O poeta passou a figurar no panteão popular, onde já estavam entronizados nomes como Padre Cícero, Antônio Conselheiro, Lampião e Cego Aderaldo. Seminários sobre a sua obra foram organizados por universidades de todo o Nordeste. O poeta recebeu títulos de “Doutor Honoris Causa” de destacadas universidades nordestinas e teve seus poemas traduzidos em vários idiomas. Foi iniciada uma profícua produção acadêmica sobre o poeta, destacando-se, na última década do século XX e no início do século XXI, os nomes de Gilmar de Carvalho, Tadeu Feitosa, Francisco de Assis Brito, Maria Silvana Militão, Oswald Barroso, Cláudio Henrique Sales, B. C. Neto, Luiz Tadeu Feitosa e a francesa Sylvie Debs, entre outros. Os seus aniversários viraram motivos de festas e comemorações coletivas, no Assaré, com afluência de artistas, intelectuais, políticos e povo da região. Para escândalo dos “puristas” da cultura popular e dos “folcloristas” mais zelosos, Patativa do Assaré virou enredo de escolas de samba, tema de quadrilhas juninas e participou de novelas da Globo, ao lado de Geraldo Amâncio, a convite do ator e cantor Jackson Antunes. Patativa transformou-se assim em um “personagem” constantemente solicitado pela mídia. Em 1991, por meio da Secult, viabilizei a publicação do livro “Balseiro”, antologia de poetas populares do Assaré, organizada por Patativa e por Geraldo Gonçalves de Alencar. Em 1993, o prof. Gilmar de Carvalho editou “Cordéis do Patativa”, e Dílson Pinheiro produziu o CD “Patativa do Assaré – 85 anos de luz e poesia”. Na I Feira Brasileira do Livro de Fortaleza, foi lançado o livro “Aqui tem coisa” (1994). Oswald Barroso realizou o documentário “O Vôo da Patativa”, fotografado por Ronaldo Nunes, em que documentou o cotidiano do poeta e os últimos dias de vida de Dona Belinha.

No dia 15 de maio de 1994, morreu Dona Belinha, que já se encontrava doente, paralítica, em uma cadeira de rodas. A morte da esposa deixou o poeta Patativa muito abatido e, durante algum tempo, ele se recolheu à sua casa, em Assaré. Nem mesmo o luto profundo impediu o poeta de continuar produzindo seus poemas, ainda belos e de grande lucidez. A humilde casa do bardo, em Assaré, virou local de verdadeiras “romarias”. Todos os dias chegavam automóveis e ônibus, cheios de pessoas vindas de todo o Brasil para visitá-lo, fotografar ao seu lado e ouvir os seus poemas e até mesmo seus conselhos. Patativa gostava de ficar horas recitando para estas platéias maravilhadas e gratificadas com sua generosidade. Em 1995, o prof. Plácido Cidade Nuvens, incansável divulgador da obra de Patativa do Assaré, publicou o livro “Patativa e o Universo Fascinante do Sertão”. O professor e poeta Cândido B. C. Neto propôs o titulo de “Doutor Honoris Causa” que foi concedido pela Universidade Estadual do Ceará. O poeta recebe o “Prêmio Ministério da Cultura”, na categoria Cultural Popular, em evento patrocinado pelo Governo do Estado do Ceará e com a presença do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Novos seminários universitários sobre a obra de Patativa são organizados, são lançados novos CDs com seus poemas, e novos álbuns de xilogravuras com a sua vida (verdade e imaginação). Suas canções são gravadas por importantes nomes da música popular brasileira, e seu nome é dado a rádios comunitárias, centros culturais, escolas, estradas e até mesmo para rotular o lançamento de cachaça, em Juazeiro do Norte. Patativa vira figura pop.

Em 1998, pela primeira vez poemas de Patativa do Assaré são incluídos em uma antologia literária no Ceará, em “Letras ao Sol”, organizada por Oswald Barroso e Alexandre Barbalho. Ainda no ano de 1998, no dia 10 de agosto, em sessão solene da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, Patativa recebeu o título de “Cidadão Paulistano”. Em 1999, com grande participação popular, a presença do povo, de autoridades e artistas, foi inaugurado, pelo Governador Tasso Jereissati, o memorial Patativa do Assaré, em Assaré, tendo como ponto alto um show de Patativa e Fagner cantando “Vaca Estrela e Boi Fubá”. No mesmo ano, em São Paulo, o radialista e pesquisador Assis Ângelo lançou o livro “O poeta do Povo: vida e obra de Patativa do Assaré”, pela editora da União Nacional dos Estudantes. .

Por ocasião da IV Bienal do Livro, no ano de 2000, foi organizada uma bela homenagem para Patativa do Assaré. Doente, sem poder viajar para Fortaleza, o poeta foi entrevistado por Dílson Pinheiro, em Assaré (no memorial), ao mesmo tempo em que artistas e autoridades lhe prestavam homenagens, no palco do Centro de Convenções, em Fortaleza. A TV Ceará transmitiu este programa ao vivo, com grande audiência. Gilmar de Carvalho lançou o livro “Patativa poeta pássaro do Assaré”, reunindo entrevistas que fizera com o poeta. A professora Sylvie Debs, da Universidade Robert Schuman, de Estrasburgo, que já tinha publicado vários artigos sobre Patativa do Assaré, na Europa, lançou no Brasil, pela editora Hedra, o livro “Patativa do Assaré – Uma voz do Nordeste”. O acadêmico Tadeu Feitosa publica entrevistas e teses sobre o poeta.

A partir de 2001, agravou-se a frágil saúde de Patativa, que ainda insistia em fumar. O poeta já não viajava e sofria com os constantes internamentos em hospitais da região. Mesmo assim, apesar da doença e do sofrimento, continuou a fazer versos e a divulgá-los em jornais e em televisões que insistiam em entrevistá-lo. No dia 8 de julho de 2002, às 18:30 horas, morre Patativa do Assaré. O médico cratense José Flávio Vieira, que cuidou de Patativa nos seus últimos dias de vida, disse-me que ele encarou a morte com muita tranqüilidade, como merecido repouso. Todo o Nordeste chorou a morte do poeta, e a notícia do seu falecimento foi publicada nos maiores jornais e revistas do País, em reportagens especiais e homenagens. No dia 9, com grande participação popular e a presença de autoridades e artistas vindos de todas as regiões do Nordeste, aconteceu o sepultamento do grande mestre da poesia brasileira. A voz de Fagner puxou o coro da canção “Vaca Estrela e Boi Fubá” entoada pelo povo comovido, no último adeus ao poeta. A morte é a completude. Patativa deixou a terra dos homens e entrou definitivamente no território do mito, o mito mais profundo, aquele que habita a alma de um povo e se abraça com sua eternidade. Desde a sua morte, o nome de Patativa do Assaré não parou de crescer. Suas canções são regravadas, seus livros e CDs são reeditados. O “Festival Internacional de Trovadores e Repentistas” (2004/05) criou “Troféu Patativa do Assaré” para homenagear os grandes nomes da poesia e da cantoria do Brasil e do exterior. Em 2007, no “XVII Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema”, em Fortaleza, aconteceu a estréia nacional do filme de longa-metragem “Patativa do Assaré – Ave Poesia”, por mim dirigido, numa verdadeira consagração popular, registrada pela imprensa como a “a comoção Patativa”.

Realizar o filme “Patativa do Assaré – Ave Poesia” foi desvendar não apenas a biografia de um amigo, de um compadre; não foi apenas estudar a obra de um poeta, mas foi, sobretudo, mergulhar no vasto oceano da cultura coletiva e tatear os caminhos onde a história individual se encontra com o destino histórico de todo um povo. Para elaboração deste trabalho, foram pesquisadas muitas fontes escritas e da tradição oral; muitos registros audiovisuais e iconográficos. Todo este material, rico de informações e de suportes variados, destacou a relevância da obra patativiana, o significado político dos seus atos e a sua imensa contribuição à cultura brasileira.

O tempo cicatriza todas as feridas, mesmo as que atingem as profundezas da alma. Se as academias de letras, provincianas e cegas pelos preconceitos contra um poeta que consideravam “matuto” e “popular”, não puderam oferecer uma "cadeira" para que o velho poeta descansasse o seu corpo alquebrado por tantos anos de lutas e genialidade, o povo nordestino o imortalizou e ofereceu o inabalável abrigo do seu coração. Patativa do Assaré teve em vida o que muitos poetas, mesmos os mais reconhecidos e laureados, gostariam de ter tido: o reconhecimento, o carinho e o amor do seu povo. Sua poesia está em todas as bocas, de jovens e de velhos, no sertão e na cidade, como bandeira de luta e emoção maior, influenciando gerações. Como símbolo concreto, para perpetuar tão grande poeta que já mora no coração do seu povo, proponho às autoridades do Ceará e do Brasil a construção de um Mausoléu. No pontão da Serra de Santana (onde nasceu e viveu Patativa), descortina-se uma bela paisagem do vale onde está situada a cidade de Assaré. A idéia é cortar um dos imensos monólitos ali existentes na forma de um cubo (como a Kaaba, a pedra sagrada dos muçulmanos), para em seguida se revestir este gigantesco cubo de granito preto e, em uma cavidade aberta na pedra, depositar os restos mortais de Patativa e de Dona Belinha. Apenas uma placa de bronze anunciaria o jazigo perpétuo. No entorno, com a paisagem natural de lajedos e a flora da caatinga, seria cultivado um jardim, ao modo de um jardim Zen japonês: vazio e essencialidade. Este jardim sertânico seria um local de contemplação e de meditação. Templo da poesia do povo brasileiro.

Se o Brasil não tem ainda o seu poeta-nacional, que simbolize e expresse o sentimento de nação, como Garcia Lorca na Espanha, Pablo Neruda no Chile, Agostinho Neto em Angola, Camões em Portugal ou Nazin Hikmet na Turquia, o Nordeste brasileiro, popular e rebelado, tem o seu: Patativa do Assaré. Patativa do Assaré já figura entre os grandes nomes da poesia do Brasil e da América Latina por ter conseguido, com tanta arte e beleza, unir a denúncia social com o lirismo, a consciência política com a percepção humana mais profunda, o amor à natureza com o misticismo libertário. Aço e rosa. Quem lê a poesia de Patativa pensa, se emociona e se transforma, porque nela estão todas as lutas e esperanças do homem, estão as palavras que se erguem com a dignidade dos justos, contra todas as formas de obscurantismos e opressões. A poesia de Patativa é, dialeticamente, "Ispinho e Fulô". Para concluir, reafirmo: é preciso um século inteiro para plasmar gênio como Patativa do Assaré. O século XX deu esse presente ao Brasil. O povo, envaidecido, agradece.

Fortaleza, fevereiro de 2008

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